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Ser livre é demais

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Há alguns meses, concluí a faculdade e finalmente pude ter as minhas noites livres, mesmo que por um curto período. A ideia era descansar durante um semestre (semestre sabático), e voltar com gás para o próximo, para a conclusão de uma pós-graduação até hoje não decidida. Em janeiro, planejei todo o meu ano, como eu queria que ele fosse em cada aspecto, como deveria me portar, o que fazer, e principalmente, como fazer. Disse para mim mesmo que não faria nada produtivo às noites, e que tiraria o período para sentir a minha casa e estar próximo dos meus familiares, coisa que não fiz durante os últimos quatro anos, com exceção dos meses de férias .  Assim que fevereiro começou, e o ano, de fato, engrenou, parece que tudo que eu mesmo tinha dito antes tinha ido para o lixo. O que aconteceu mesmo foi um sentimento embrulhado no peito, que me xingava de vários nomes e me apelidava de "zé ninguém". Isso é mentira, e tenho ciência, eu trabalho manhãs e tardes de segunda a sábado, fol...

O silêncio na poltrona verde

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  Impregnado estava o cheiro de morte naquele escuro quarto, numa chuvosa noite de um triste domingo. Dois homens que se diziam amigos estavam no mesmo cômodo esperando por um momento de triunfo — a passagem de um plano para o outro de maneira bastante incômoda, mas rápida, simbólica e cinematográfica. A baixa luminosidade era um detalhe requerido por Hugo, que tinha Cássio deitado numa grande cama preparada, com um aspecto que lembra muito mais o estilo visual dos móveis da era Vitoriana. O ambiente exalava o sentimento de raiva incumbida, de um desgosto que a língua faria questão de cuspir, e que o cérebro havia tentado em vão esquecer. Hugo estava com o corpo e a mente de Cássio, que já tinha entregado todos os pontos desde que o "amigo" o trancara no quarto escuro. Sabendo que aqueles provavelmente eram seus últimos momentos, o último passou a observar os móveis que guardava dentro do seu cômodo de descanso: uma mesa avaliada em mais de dois mil reais, que com delicadeza ...

Amanhã, ela viverá tudo de novo

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Numa cotidiana reunião noturna, a família Álvaro se sentou de frente para a televisão, com o som mutado, após uma típica partida de jogo de tabuleiro. Os Álvaros presentes eram: Marília (louca por tricotar), Sabrina (amante dos jogos), Lucca (amante de qualquer coisa) e Cíntia (amante de cuidar de todo mundo). Apenas os quatro estavam presentes naquela noite, porque o restante da família ou estava trabalhando ou no hospital, acompanhando Lúcio, que havia sido internado após um acidente em casa. Dentro daquela casa, pelo menos por algumas horas, instaurou-se um clima que não indicava preocupação, pois os problemas aparentemente tinham sido deixados de lado, e uma certa distração ocupou o lugar sem hesitação. Sentada na cadeira de tricô, como a titulou, Marília comentava sobre como os garotos que ela acompanhara na infância tinham crescido. Ela brincou, dizendo que se sentia velha, e que o tricô não a ajudava a se sentir mais jovem. Sabrina, que parara a jogatina para ouvi-la, respondeu ...

Refeição de César

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Senti-me como se estivesse numa majestosa máquina do tempo, ou melhor, como se tivesse saído de uma, pois o lugar em que comi pela última vez era gigantescamente ornamental, e lembrava em cada detalhe as tavernas medievais que víamos pela televisão ou nos livros de história na escola. Aquele ambiente rústico e com baixa iluminação convidava qualquer entusiasta de história para entrar e chamava a atenção de curiosos ou perdidos em busca de uma refeição para fazer naquele dia. Contaram-me que não havia muito tempo que aquele restaurante tinha se instaurado ali, ou seja, era novo. Logo ao entrar, fui recebido por um homem loiro que, por alguma razão, me causava uma leve impressão de que sua origem não era brasileira, mas russa. Ah! Tive que desviar o olhar para um objeto interessante e olhei para as grandes cervejas servidas nas mesas. Ah! Mas eu não bebo. Vim para o local por um simples panfleto que me entregaram perto da rua Margarida, com os dizeres: "Escolha bem, e comerás aqui u...

AMADO SAMAEL

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  Assim que me levantei da cama, senti uma sensação esquisita. Ela era quase inexplicável, uma sensação de pressão no peito, sentia como se fosse morrer (além da forte dor de cabeça). Pensei que pudesse ter sido por conta do brusco movimento que fiz ao levantar, mas isso nunca tinha acontecido antes. Estava nua, precisava me vestir de alguma forma.  O quarto era grande, havia um mosquiteiro envolvendo a cama de cor rosa, com muitos ursos decorando o chão.  — É o quarto de alguma menina. — Logo soltei. Mas assim que comecei a olhar melhor, vi que tinham brinquedos sexuais na gaveta do guarda-roupa, e logo associei a uma mulher.  Eu não me lembro de ter visto uma quantidade tão grande de brinquedos sexuais guardados em um só lugar. Essa pessoa parece ser tarada ou muito necessitada — de qualquer modo, eu segui procurando mais e mais evidências para me localizar melhor. Fato era que não sabia onde eu estava, ou o que eu fazia ali. Achei algumas roupas ainda usáveis, e d...

Conversa entre ninguém e nada

  Quarta-feira, algum dia de agosto de dois mil e alguma coisa. Quatro funcionárias da limpeza de uma escola se encontram no refeitório, já que seu horário de entrada é às nove e meia. O relógio marca nove e quinze, e todas as quatro, sempre adiantadas, já estão presentes. Edileuza, a mais antiga, já está na empresa há sete anos. É uma senhora de sessenta e oito anos, e ninguém sabe ao certo se já está na idade de se aposentar ou não, considerando as constantes reformas na previdência. Há também a Lúcia (dois anos de empresa, a mais jovem de todas), Carla (recém-chegada, uma mulher madura e bonita) e Ângela, que mal consegue se manter em pé. O relógio marca nove e dezesseis. Lúcia comenta: — Ah, que calorão fez no último domingo — disse ela, enquanto mexia em suas redes sociais. Depois disso, não disse mais nada, tomou seu chá e olhou para o sol, que brilhava fortemente naquela manhã. Minutos depois, antes das nove e dezenove, Edileuza comenta: — Ah! — exclamou. — Tenho que ir ao m...

CIRANDA, CIRANDINHA...

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Suas pernas se moviam de um lado para o outro, aparentava estar dormindo, mas por estes movimentos, podia-se deduzir que fingia. Fingia porque doía menos do que, de fato, olhar para a realidade que a cercava. Vestindo um gorro, chinelos, meias que abraçavam seus pés inchados, queixava-se de frio. Se remexia inteira, parecia cantar em sua mente uma música tranquila e doce, que a fazia fechar os olhos e sorrir. O ritmo de seu remelexo era o mesmo, o que me fazia confirmar que ela estava numa espécie de ritmo repetitivo em seu cérebro tão ocupado ou tristonho. Indaguei-me o que esta senhora tinha feito antes de eu encontrá-la naquele estado numa noite de novembro, com cheiro forte de urina amarela de dias passados. Abriu os olhos.  — Que frio! Muito frio! Ah! - Gemeu.  Me questionava se eu não sentia o mesmo, me fitando com aqueles olhos caídos. Eu a respondi dizendo que não, e que estava apenas de calça porque era costume. Ela desviou o olhar, passou a ver aqueles pr...