Amanhã, ela viverá tudo de novo
Numa cotidiana reunião noturna, a família Álvaro se sentou de frente para a televisão, com o som mutado, após uma típica partida de jogo de tabuleiro. Os Álvaros presentes eram: Marília (louca por tricotar), Sabrina (amante dos jogos), Lucca (amante de qualquer coisa) e Cíntia (amante de cuidar de todo mundo). Apenas os quatro estavam presentes naquela noite, porque o restante da família ou estava trabalhando ou no hospital, acompanhando Lúcio, que havia sido internado após um acidente em casa.
Dentro daquela casa, pelo menos por algumas horas, instaurou-se um clima que não indicava preocupação, pois os problemas aparentemente tinham sido deixados de lado, e uma certa distração ocupou o lugar sem hesitação.Sentada na cadeira de tricô, como a titulou, Marília comentava sobre como os garotos que ela acompanhara na infância tinham crescido. Ela brincou, dizendo que se sentia velha, e que o tricô não a ajudava a se sentir mais jovem. Sabrina, que parara a jogatina para ouvi-la, respondeu dizendo que não tinha nada a ver não, e que Marília era uma mulher que vivera a vida ao máximo e que apenas estava num momento de lazer. Lucca tentava identificar quais eram os meninos que Marília citara, e Cíntia permanecia calada, mas rindo.
Quando Marília lembrava os nomes de cada garoto que crescera na rua, além de refrescar a memória de Lucca, fazia Cíntia se impressionar com o cérebro tão bom da tricoteira, que lembrava de fatos curiosos.
Ela mencionou o dia em que Juauzinho, um dos meninos que brincava com Lucca quando este era bem pequeno, enfiou o pé dentro do esgoto que estava aberto bem na frente de sua casa, numa corrida atrás de uma bola de futebol. Também mencionou a noite em que Cíntia berrava e chorava atrás de um balão rosa "que lembrava chiclete", com olhos esbugalhados e com glitter, que para ela era maravilhoso!
Sabrina já tinha se dispersado novamente, mas Lucca manteve-se atencioso. Ele observava o modo como Marília tricotava, observava a agulha passando por dentro dos buracos e o movimento que ela fazia. Dispersou-se depois também, com palavras sem significado passando por sua mente, deixando o som ambiente da conversa com Marília abafado e irrelevante.
— Já não me escutam mais. — Marília falou com uma voz tristonha. Percebeu que Sabrina e Lucca não estavam mais presentes em ouvidos. Cíntia, um pouco irritada, foi para a cozinha. Ela já sabia que Marília daria um xilique. — Como querem que eu acredite que não estou envelhecendo?! Lucca e Sabrina não se interessam mais pelos meus assuntos e lembranças. — Largou a lã e a agulha na cadeira e foi em direção à janela, para arejar um pouco a mente.
Ali, disse para os ventos que estava muito preocupada com Lúcio e que, ontem mesmo, ele teria dito para ela que os dois ficariam juntos para toda a eternidade. Cíntia, achando a fala do enfermo muito bonita, se aproximou de Marília e a acalentou.
— Onde você acha que ele está?
— No trabalho, oras! Mas já tem muito tempo que não o vejo. O relógio quebrou, Cíntia?
— Ele deve ter pegado um grande trânsito.
— Ele não tem telefone? Lúcio ainda sabe usar um, já é um homem feito, no auge de seus trinta anos!
— Deve saber sim. — E deu um beijo na testa da tricoteira.
Marília retornou para a sala e se sentou, observando os dois jovens. Sabrina começou a se maquiar, e Marília se empolgou para fazer o mesmo. As duas pegaram batons, maquiagens, bases e começaram a brincar com as cores e tonalidades. Algumas músicas foram tocadas, Lucca até cantou, mas Cíntia permaneceu calada e preocupada. Para não corromper o ritmo de felicidade que temporariamente havia se instaurado naquele lugar, foi para a cozinha e lá se lamentou. Pensava a todo momento em Lúcio e acreditava, infelizmente, que o homem poderia não retornar mais do hospital.
Quando Sabrina terminou de maquiar a mulher, mostrou a ela como ficara no espelho, e isso causou certo espanto.
— Eu estou velha! Eu disse. — Marília se assustou com suas rugas e pele flácida. Seus cabelos brancos eram o reflexo das memórias antigas que contara naquela reunião noturna, histórias com cerca de vinte ou vinte e cinco anos, algumas irreais, criadas pela sua própria mente. — Cadê Lúcio?! — perguntou pelo esposo, que estava internado há dias devido a uma queda dentro de sua própria casa, após escorregar enquanto passava pano no piso. Junto com algumas partes de seu corpo, Lúcio quebrou a esperança que Cíntia, filha de Marília, tinha de um dia ver os dois juntos novamente. O idoso tinha problemas de saúde quase infinitos.
— Vó, por favor. Esqueça isso. Lembre-se de que você... — falou Sabrina, que depois entrou em um silêncio de minutos e voltou a falar sussurrando, perto do ouvido da avó. — Está linda.
Na noite anterior, esta cena já existiu. E amanhã, ela viverá tudo de novo.
Comentários
Postar um comentário