O silêncio na poltrona verde

 


Impregnado estava o cheiro de morte naquele escuro quarto, numa chuvosa noite de um triste domingo. Dois homens que se diziam amigos estavam no mesmo cômodo esperando por um momento de triunfo — a passagem de um plano para o outro de maneira bastante incômoda, mas rápida, simbólica e cinematográfica. A baixa luminosidade era um detalhe requerido por Hugo, que tinha Cássio deitado numa grande cama preparada, com um aspecto que lembra muito mais o estilo visual dos móveis da era Vitoriana. O ambiente exalava o sentimento de raiva incumbida, de um desgosto que a língua faria questão de cuspir, e que o cérebro havia tentado em vão esquecer. Hugo estava com o corpo e a mente de Cássio, que já tinha entregado todos os pontos desde que o "amigo" o trancara no quarto escuro. Sabendo que aqueles provavelmente eram seus últimos momentos, o último passou a observar os móveis que guardava dentro do seu cômodo de descanso: uma mesa avaliada em mais de dois mil reais, que com delicadeza abrigava um abajur antigo de família e muito raro, acompanhado de seus pertences caros e luxuosos.
Vivendo sozinho nestes últimos anos, Cássio se encheu de objetos de valor num calor contínuo que só esfriava quando sua mente sentia um prazer pós-compra, quase como se fosse um viciado compulsivo. Uma lágrima caiu daqueles olhos vermelhos, que viram tantos acontecimentos, mas ao mesmo tempo, fingiram não ver. Hugo contou cada lágrima e a cada uma delas deu um substantivo comum.
— Uma. Indiferença. Esta é por ter sido indiferente quanto aos problemas dos seus próximos. Você, o tempo inteiro, se preocupou consigo e consigo mesmo, não dando espaço para os outros externarem os problemas que viviam. — disse Hugo, tirando de seu bolso uma das facas da cozinha de Cássio. O curioso é que Hugo tinha dado aquela faca de presente, faca cara, de corte fino. O homem beijou o objeto e o levantou para o céu, o observando e analisando cada detalhe daquele brilhante cortador que podia findar Cássio naquela perfeita noite. Uma outra lágrima caiu. — Duas. Indisposição.
— Indisposto? — Cássio perguntou incrédulo. — Não é de mim que está falando.
— Nunca ajudou nada e ninguém por livre e espontânea vontade, nem muito menos levantou um dedo quando sua própria mãe gritava por ajuda numa cama como esta. Como dorme à noite, Cássio?
Um silêncio abrigou o lugar, e de modo inexplicável, sentou-se na poltrona que tinha de frente para a cama e ali ficou por minutos que mais pareciam horas. Cássio não conseguia ver em sua própria cabeça se, em algum momento, aquele terror iria acabar. Mas ele sabia que dali, alguma coisa desagradável sairia.
— Por que você deixou este silêncio entrar? — Hugo estava furioso. Seu rosto tinha uma feição de dissabor, desprazer e amargor. Fechou as janelas do quarto antes que mais silêncio pudesse entrar. Estava tranquilo quanto à posição delas porque, como eram altas, Cássio não poderia pular.
Uma lágrima a mais.
— Três. Involução. — disse Hugo, se sentando ao lado de Cássio. Ele respirou fundo e encarou Cássio, observando cada detalhe de seu rosto. — Você não tinha esta barba antes, não é? Me lembro de quando viajamos para a Rússia, aquele lugar frio, que belo! Marianna adoraria ter tido mais viagens como aquela, ah, que lindo. Marianna! Viva a Marianna! — exclamou, fazendo menção à canção, e rindo de maneira descontrolada logo em seguida. — Você involuiu. Era um ser humano íntegro.
— Eu admito que foi o dinheiro. — afirmou Cássio. — Se quer me culpar de algo, por favor, que me culpe. Eu não quero mais viver da forma que eu vivia, eu quero voltar a ser como eu era antes. O dinheiro me mudou.
— Você mudou a forma que via o dinheiro, Cássio. — disse. Deitou-se na cama, e colocou a faca na mesa de cabeceira, e começou a cantar uma música que os dois ouviam quando eram amigos na infância. — Pensou, em algum momento, que poderia comprar o silêncio da minha esposa, Cássio? — se levantou bruscamente, assustando a vítima. — Como passa, pela sua cabeça, em algum momento, me conhecendo há tanto, fazer da minha mulher a sua alteza, sua soberana?! Ela é minha permanente confidente, confio nela como confio em Deus, e sei que ela jamais teria cedido a um porco como tu.
Por causa do calor, Hugo novamente abriu as janelas do quarto, e o silêncio voltou a se sentar na poltrona verde que ficava de frente para a cama. Hugo, neste tempo, brincou com fósforos, ameaçou queimar Cássio, e ria descontroladamente. Indefesa, a vítima teve seu celular arremessado contra a parede, impossibilitado de fazer alguma ligação. A chave que trancava a porta havia sido quebrada facilmente por Hugo, já que era feita de material frágil e fino.
— Estou com fome. — disse Cássio. — Não sei o que pretende fazer comigo, trancado no mesmo cômodo que eu, e não tendo me matado até então. Eu deixo. É só terminar comigo.
— Não. Estou mais a fim de trazer o seu bolo. — disse Hugo, indo até o outro lado do quarto para pegar uma fatia de bolo com a faca que estava na mesa de cabeceira. — Você comerá este bolo sabendo que será o seu último, e que este é o seu aniversário final. O sabor tem que ser muito adequado e acertado, acho que não tem como errar no chocolate, e como sei que gosta, foi este que encomendei. — ao se aproximar de Cássio, Hugo jogou o bolo no chão. Com a faca na mão, obrigou a vítima a se deitar e comer o alimento. — Porco. — finalizou.
O sofrente transpirava e sentia cair cada gota, que ia em direção ao bolo que voltava para a sua boca, com uma insaciável gulodice que irritava Hugo. A festa de aniversário que Hugo disse que prepararia, que encomendaria o bolo e decorações, de fato aconteceu, mas sem festa, apenas aniversário, e com o detalhe de que Hugo apenas tinha convidado o aniversariante e a si mesmo.
— Os homens falam com você à noite, Cássio? — perguntou Hugo. Não obteve respostas, já que o homem estava mergulhado no bolo que comia no chão, com um chocolate tão amargo quanto o coração de Hugo. — Os homens falam com você durante a noite, CÁSSIO?! — aumentou o tom de voz.
— Eu não falo com ninguém durante a noite.
— Nem vê ninguém ou nada enquanto dorme?
— Não. — Cássio respondeu.
— Não sonha. Você não sonha. Um homem que não sonha é um homem morto.
— Não estou morto, Hugo. — disse Cássio, com uma voz um pouco difícil de reconhecer devido ao volume de bolo presente dentro de sua boca. Continuou mastigando e sentindo aquele prazeroso sabor, que despertava a sua melhor lembrança com um gosto de infância, evocando memórias com o então melhor amigo, de quando passeavam e corriam juntos naquelas tardes quentes de verão. Esgotado de ouvir a voz e as palavras pronunciadas por Cássio, Hugo se afastou. Olhou para a janela aberta e respirou profundamente. Com a faca dada de presente em suas mãos, se posicionou atrás de Cássio e o atacou sem hesitar. No momento em que percebeu que não havia mais nenhum movimento por parte da vítima, Hugo se sentou no chão e olhou para as suas mãos, entrando em um pânico descontrolável, olhou para si no espelho e o quebrou, assim como fez com todos os objetos que via. A janela aberta permitiu com que uma leve brisa entrasse dentro do cômodo. Hugo se arrepiou, mas alegou para si mesmo que aquilo não era um sinal, não, não era. Me diga que não era uma mensagem!
— Você está morto, Cássio. — tentou afirmar para si mesmo. Em pânico, achou palavras para descrever tudo o que fez, e depois de escrever este exato texto, atacou a si próprio, deixando apenas que o silêncio voltasse pela janela e se instaurasse naquele cômodo por algumas horas.

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