AMADO SAMAEL

 



Assim que me levantei da cama, senti uma sensação esquisita. Ela era quase inexplicável, uma sensação de pressão no peito, sentia como se fosse morrer (além da forte dor de cabeça). Pensei que pudesse ter sido por conta do brusco movimento que fiz ao levantar, mas isso nunca tinha acontecido antes. Estava nua, precisava me vestir de alguma forma. 


O quarto era grande, havia um mosquiteiro envolvendo a cama de cor rosa, com muitos ursos decorando o chão. 


— É o quarto de alguma menina. — Logo soltei. Mas assim que comecei a olhar melhor, vi que tinham brinquedos sexuais na gaveta do guarda-roupa, e logo associei a uma mulher. 


Eu não me lembro de ter visto uma quantidade tão grande de brinquedos sexuais guardados em um só lugar. Essa pessoa parece ser tarada ou muito necessitada — de qualquer modo, eu segui procurando mais e mais evidências para me localizar melhor. Fato era que não sabia onde eu estava, ou o que eu fazia ali. Achei algumas roupas ainda usáveis, e decidi vesti-las. 


Pude notar que muitas das vestimentas que estavam no guarda-roupa, eram velhas ou estavam rasgadas. Notei também que são roupas muito largas, não mostram muito do corpo, não deixam nenhum desenho ou curva aparecer. 


A dor no peito veio tão forte desta vez, que sofri uma queda. Para não cair, segurei-me em um varal, que caiu junto comigo. O barulho maior veio do próprio objeto, e não de mim. Ainda no chão, observei que havia sacolas debaixo da cama, coisas muito volumosas. 


— Talvez sejam sapatos. As pessoas gostam de guardar sapatos debaixo da cama.  — Associei. Mas um questionamento não queria fugir: onde eu estava? De quem era esse bendito quarto? 


Não havia uma foto sequer, nem documentos. Impossível identificar o dono do dormitório! 


Ouvi passos vindo em minha direção, passos suaves, lentos e espaçosos. Esta pessoa que estava vindo parecia estar muito calma. Levantei-me novamente de maneira brusca, e me deitei na cama, tentando reproduzir a cena em que eu ainda estava dormindo. 


— Bom dia, Yara. — disse o homem. Sua voz grave me fez sentir arrepios, mas, ela não era familiar. Pode ter sido um grande engano, será que eu mesma sou a Yara? 


Fingi estar acordando naquele exato momento, me espreguicei, abri os olhos e fingi susto. 


— Não se assuste comigo, Yara. Vá tomar um banho, você está segura. — disse. — Te espero na mesa da cozinha, preciso conversar com você. Levante-se, te levo até o banheiro. — concluiu. 


O gentil moço pegou nas minhas mãos e me guiou até o banheiro. Lá, já tinham roupas estendidas pelo boxe. Tomei um banho quente e relaxante, selecionei as peças que eu queria, e me arrumei. Pensei que talvez aquele moço pudesse me levar de volta para casa. 


Mas foi quando percebi que não faço ideia de qual é a minha casa. Não sei o meu próprio nome, o que faço aqui ou o que precisaria fazer. Não reconheço o ambiente ao redor da casa — não sei o nome da avenida, nem se estou na mesma cidade ou estado. Poderia pedir mais informações para o moço, gentil como ele é, provavelmente me ajudaria. 


Ao sair do banheiro, me assustei — o homem estava na porta do banheiro, esperando por mim. 

— Que recepção — Soltei. — Desculpe, mas… — hesitei. — Você me conhece? — Perguntei. Percebi que o homem tomou um leve susto. 

— Não, na realidade. Eu te encontrei ontem na rua, você estava toda molhada da chuva e pedindo socorro. Passei de carro e te peguei. Vi nos seus documentos que seu nome é Yara. 

— Yara — repeti em voz alta — E como eu não me lembro de nada disso? 

O moço ficou em silêncio. 

— Digo, por que eu não me lembro de nada do que aconteceu e do antes? Eu não sei de onde eu vim. Onde estão meus documentos? 

— Eu não lembro. Eu sei que deixei em algum lugar por aqui — E ele começou a procurar, mas logo pedi para que parasse. Depois iríamos procurar com mais cuidado. 

— Você disse que a mesa estava pronta. Onde é a cozinha? — questionei. Ele pegou na minha mão e me levou até a cozinha. Por que ele gosta de pegar na minha mão? Por que não posso ir sozinha? — Eu consigo andar por conta própria, moço.  — Disse, soltando uma leve risada para ficar mais leve. 

— Disso eu sei, amor. Você estava tonta mais cedo. Quero me certificar de que não vá cair. 

— Mais cedo? Quer dizer que eu acordei em outro momento? 

— Não, não. É que eu me confundi com ontem. — Não o respondi, deixei-o tirar a cadeira para que eu me sentasse. Assim que comecei a comer, ele se ausentou, dizendo que iria resolver algumas coisas em outro cômodo. Pediu para que eu não levantasse para que não tivesse nenhuma tontura. A primeira coisa que fiz quando ele saiu, foi levantar. Procurei pela cozinha por alguma evidência ou coisa que me fizesse lembrar pelo menos do dia de ontem. O que aconteceu para eu estar na rua? E quem é este homem que me resgatou? 


Os móveis da cozinha estavam todos bem limpos. Não pude deixar de notar que tudo o que era de aço estava brilhando. Ele parecia ser muito higiênico! Ao passar para a sala, vi que todos os eletrônicos estavam desligados. A televisão também, e mesmo tentando ligar, ela não iniciava (provavelmente foi tirada da tomada). Nenhum quadro estava pendurado, todos estavam virados para a parede, aparentemente um tapete vermelho estava atrás desses quadros também. 


Lentamente caminhei em direção aos quadros para tentar virá-los e descobrir algo sobre o homem, mas, fui surpreendida. Sua mão tocou no meu ombro, e sua voz grave ecoou nos meus ouvidos. 


— Do que você precisa? — Perguntou. 

— Eu só queria saber mais informações suas. Queria te agradecer e nem sei seu nome e quem você é — Respondi, quase gelada. Um “muito obrigada” seria ótimo para começarmos. 


— Não precisa ver os quadros, estão todos quebrados. Vou trocá-los amanhã. Aliás, meu nome é Bezalel. Senta lá no quarto que você estava. Por favor. 

— Preciso de mais informações sobre mim, quero conhecer melhor quem eu sou. 

— Como posso te responder isso, sendo que não te conheço?

— Então quero ir para outro lugar, para ver se alguém está procurando por mim. 

— Até o fim do dia sairemos. Só preciso que seja paciente. 


No caminho para o quarto, vi que havia quadros que também estavam virados para a parede. Por que todos esses objetos estavam escondidos? Por que as janelas do quarto estavam fechadas? 


Foi quando percebi que na realidade, estava em uma emboscada. E eu precisava descobrir o que estava acontecendo. 


— Eu vou trancar a porta agora porque precisarei me trocar. Acho que esta roupa não caiu muito bem. 


— Certo. Depois vou pedir a sua ajuda na cozinha, porque não levo muito jeito para cozinhar. 


— Pode deixar. — Disse, com um leve sorriso. Ao trancar a porta, procurei por pistas. Subi na cama e tentei ver se havia alguma coisa em cima do guarda-roupa (e notei que havia uma grande caixa). Era impossível de alcançá-la, sou baixa e a caixa estava bem encostada no final do móvel. Tive a ideia de pegar alguns bancos e cadeiras para formar uma “escada”. Subi nesta pilha e consegui arrastar a caixa para frente, mas ao tentar pegá-la, me desequilibrei e caí. O barulho foi tão grande que Bezalel veio questionar se estava tudo bem, e respondi que sim. 


Um grande lençol caiu em cima de mim, que por sinal, estava dentro desta caixa. Dentro dela também havia algumas fotos, fotos minhas, aliás, com documentos e com acessórios. Vi no meu registro geral que meu nome na realidade é Dalila dos Alves, e não Yara. Nasci em 1984, no dia quatro de março. 


Uma das fotos me chamou muito a atenção. Era uma foto minha abraçando uma garota, uma adolescente, muito linda! 


— É a minha filha. Eu tenho uma filha! — Esta foi a primeira lembrança que veio à minha mente. Melissa, minha querida! — Eu vou te encontrar, filha. Vou voltar para você. — Disse para mim mesma, beijando a foto da minha pequenina. 


Não havia mais nenhum indício interessante de quem eu era dentro da caixa, nenhuma outra lembrança surgiu ao ver as outras fotos. Mas algo de especial me intrigou: havia uma foto, nitidamente cortada, que me mostra abraçada a alguma outra pessoa, e pela grossura do braço e pelas unhas, suspeito que seja um homem. Mas não consigo identificar quem é. 


Ouvi uns barulhos da porta, corri para guardar a caixa e troquei rapidamente de roupa. Depois, eu a abri para que pudesse ver se ele estava ao redor, e quando vi que não havia ninguém, me liberei para caminhar pela casa. 


Tirei os chinelos para que não fizesse nenhum barulho ao pisar no chão, e caminhei com cautela para não ser vista. A casa tinha muitos quartos, e eu me confundia nos caminhos que trilhava. Tinha vezes que eu voltava para o mesmo corredor, entrava em quartos totalmente escuros e outros que tinham um cheiro muito forte. Em uma das voltas, decidi entrar no quarto de cheiro forte, que estava totalmente na escuridão. 


— Meu Jesus! — Exclamei, ao entrar com cautela dentro do quarto. Não havia nenhuma lâmpada para acender, pois pelo que vi, ela foi tirada do bocal. 


De repente, tropecei em algo sólido. O cheiro tinha ficado mais forte ainda. Quando vi, havia um pano por cima dessa coisa. Me aproximei, tirei o lençol, e tive uma das sensações mais esquisitas que já senti. 


Me senti apavorada, trêmula e nervosa. Não podia gritar, não sentia o ar para que pudesse fazê-lo e nem queria — Não gostaria que Belazel descobrisse onde eu estava. Era a minha filha, enrolada no lençol ensanguentado, esfaqueada. 


— Esta é a minha casa. — Falei, gaguejando e assustada. Me lembrei de que na noite de ontem, eu discuti muito, briguei muito com alguém. Mas de repente, acordei na cama hoje. 


Rapidamente associei as facas limpas e brilhantes que encontrei na cozinha às marcas de faca que encontrei no corpo de Melissa. Apesar de ter sido surpreendida, me senti mais assustada por ter encontrado o corpo no escuro do que ter literalmente encontrado o corpo. 


— Eu sinto, de alguma forma, que eu já sabia disso. — A morte me abalou, claro, mas parecia que eu já estava quase conformada. É como se eu já tivesse ciência de que a minha Melissa já estivesse morta. 


A porta do quarto havia se fechado. E como eu não queria gritar, não gritei. Respirando ofegantemente, tentei abrir a porta, mas parecia que ela estava trancada pelo outro lado. 


— Maldito! Este cara não foi um anjo, foi um demônio! — Foi quando pensei, finalmente, com mais clareza. Belazel é o assassino da minha filha, um bandido que estava na minha casa e que com as facas me ameaçou e atacou a minha menina. Provavelmente ele deve ter me atacado e é por isso que eu acordei sem a memória completa pela manhã. É um psicopata, assassino! Eu tenho medo e nojo do que ele poderia fazer comigo hoje. 


Por sorte, com muita insistência, consegui abrir a porta. Corri muito, muito, para o quarto. Mas a porta de lá também estava trancada. Minhas opções eram: ou eu me escondesse para sempre em um dos quartos escuros, ou fosse para a sala ou a cozinha. 


Ele provavelmente deveria estar na cozinha neste momento, preparando nosso almoço. Ou na sala, me esperando para ajudá-lo. Qualquer uma das saídas que eu escolhesse poderia, de certa forma, acabar comigo. Eu precisava entrar no seu jogo para que pudesse sair ainda ilesa. 


Fui até a cozinha, e o vi preparando o almoço. Cheguei por trás, e cheirando o seu pescoço, disse que estava muito grata pela ajuda que ele me ofereceu.


— Obrigado, meu anjo. — Disse, pegando em seus braços, sentindo o cheiro de seu perfume. — Você salvou a minha vida. Nem sei como te agradecer, Belazel. 


— Que bom que você entendeu isso, Yara. — Disse, se virando para mim. Ele acariciou o meu queixo e me beijou, me prendendo com força ao seu corpo. Ao alisar o seu corpo, senti umas marcas muito familiares na região da barriga. Continuei a beijar, e ele a me acariciar, pegando nas minhas partes mais guardadas e eu nas dele. 


Foi quando me lembrei de que quando o meu esposo Samael, bêbado, havia chegado em casa, ele teria visto a sua enteada com outros olhos, e isso me incomodou. Houve uma discussão muito feia, na qual houveram gritos e ameaças. 


Samael foi até a cozinha e pegou a faca, me ameaçou primeiramente e disse que “eu teria que aceitá-lo para que nosso casamento desse certo”. Minha filha chegou em seguida para interromper, alegando que o casamento era de fachada e que era para ele ir embora das nossas vidas. 


— Você é um nojento, Samael. Eu me recuso a te chamar de pai. Você passa o dia inteiro fora de casa e chegando aqui quer exigir respeito. Primeiro te respeite, antes de vir exigir de nós alguma coisa! — Disse Melissa. — Eu não tenho medo de você, e tenho certeza que minha mãe também não. 


Ele, furioso, veio para cima, e com a outra mão, me deu vários murros no peito, depois puxou os meus cabelos. No chão, gritei de dor. Tentei revidar, mas era impossível — estava fraca, e ele fazia tudo de maneira contínua. Melissa tentou separar-nos, mas ao ver que Samael a olhou com olhos de fúria, correu para a sala, mas dali eu só consegui ouvir os gritos da minha filha. Meu desespero foi tão grande, que gritei por socorro para que alguém da rua pudesse ouvir, mas ninguém vinha. Gritava e gritava na janela, buscando por alguém. 


— Você sempre será minha, Dalila. — Disse o homem doente, que me bateu com algo muito forte na cabeça. Possivelmente foi aí que eu caí, não morta, mas desacordada.


Assim que me levantei da cama, senti uma sensação esquisita. Ela era quase inexplicável, uma sensação de pressão no peito, sentia como se fosse morrer (além de uma forte dor de cabeça). Pensei que pudesse ter sido por conta do brusco movimento que fiz ao levantar, mas isso nunca tinha acontecido antes. Estava nua, precisava me vestir de alguma forma. 





FIM


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